sábado, 24 de dezembro de 2011

Portimão, vinte e quatro de Dezembro de 2011. A crise chegara para ficar e atirar para o desemprego e pobreza centenas de cidadãos. No ano anterior poucas foram as crianças que receberam o que desejavam, ao contrário de outros que, por terem um extracto bancário estável, foram mais felizes. 
Santiago e a sua família foram umas das inúmeras famílias que o Natal anterior correra mal e sabiam que o deste ano não seria diferente. Viviam num anexo alugado há seis anos desde que Sertório, o pai, se suicidara por falta de emprego. Miriam, a mãe, fazia umas horas numa tasca onde recebia bastante mal e era assediada pelo patrão. Porém não fazia queixa, pois nem o seu segundo emprego lhe proporcionava grande coisa. O seu objectivo era sobreviver a cada dia que passa e trazer alguma felicidade aos seus três filhos, Octávio de dezasseis anos, Santiago de doze e Esmeralda de oito. Era por eles que se sujeitava àquelas condições de trabalho, era por eles que continuava a sobreviver, era por eles que continuava a sorrir e a ser, momentaneamente, feliz.
Na sala de estar e jantar, não se encontrava nenhuma árvore como era habitual todos os anos, logo, também nenhum presente era visível, em redor. Mas, apesar disso, um pequeno presépio estava montado e à vista de todos no canto da sala. Santiago e Esmeralda julgavam que os presentes estavam escondidos algures pelo anexo, já Octávio sabia perfeitamente que não iriam existir presentes. Para além disso, o jantar nem seria uma grande refeição como costumava ser há uns anos atrás. De facto, seria uma grande sorte se houvesse comida naquela noite. Esperavam por um milagre, assim como muitas famílias pobres e à beira da miséria de Portimão.
Quando o relógio da cozinha marcou as nove horas, toda a família se juntou à mesa para cear. O irmão mais velho não se surpreendeu por ver quatro pratos com sopa no seu interior e outros quatro com um ovo estrelado e, para acompanhar, um sumo de uma marca desconhecida para todos. Sentaram-se em silêncio e deram as mãos para rezar.
  - Senhor abençoa esta comida que hoje temos à nossa frente – começou a mãe - e dai-nos forças para amanhã e doravante, termos o mesmo. Ámen.
  - Termos o mesmo? A comer sempre disto vamos parecer esqueletos andantes. – manifestou Santiago.
  - Cala-te e come, Santiago. – repreendeu Octávio. – Muita sorte tens tu por estares sentado a comer uma refeição, por pobre ou não, que seja. 
Octávio sabia o que custara a ter comida na mesa desde que a crise chegara. Abandonara os estudos, contra a vontade da mãe, para arranjar um emprego e ajudar a mãe a pagar as despesas e a pôr alguma comida na mesa.
   - Merecemos melhor que isto! Se o pai estivesse aqui.
   - Deixa o pai em paz! Morreu, não há nada a fazer!
   - Já chega meninos. Comam a sopa.
Santiago estava indignado com a situação. Não era justo os outros terem comida e presentes e ele não os ter. Os outros não sofreram para terem comida requintada na mesa, os outros nunca souberam o que era ter dificuldades e tentar superá-las, os outros não sabiam nada.
  - Se calhar foi por ter de comer isto todos os dias que o pai se matou.
Octávio bateu com o punho na mesa, fazendo Esmeralda saltar com o susto.
  - Já chega! Tu não sabes nada do pai! Que idade tinhas para te lembrar de alguma coisa? Nenhuma! Foi a última vez que falaste do pai assim! 
 - Para tua informação tinha seis anos! Tinha acabado de entrar na escola! Lembro-me perfeitamente de tudo! Mas pensas que só por teres um emprego reles e por trazeres algum dinheiro que és alguém na vida? Nem dinheiro para comprares algo para mim ou para a Esmeralda arranjaste. Que belo emprego esse, sim senhor!
Miriam, foi obrigada a falar, num tom solene e cansado.
  - Santiago, controla-te, filho. O teu irmão só fez os dezasseis anos a semana passada. Agora já pode arranjar um emprego melhor.
  - Às tantas anda a investir o dinheiro que ganha em porcarias, como o pai fazia!
Octávio ouvira o que nunca ninguém antes lhe tinha dito. Aquela tinha sido a gota de água. Levantou-se, irado, e pegou no cachaço do irmão e levou-o até à porta, que abrira com o pé.      - Se não és feliz aqui, talvez uns tempos na rua te façam bem! – e atirou o irmão para a rua. – Volta quando tiveres arejado as ideias. – e fechou a porta.
   - Prefiro nem voltar! – gritou Santiago com a intenção de se fazer ouvir.
Octávio sentou-se e jogou as mãos à cara, culpando-se com o que tinha feito.
Esmeralda olhou para Miriam e viu-a com um olhar triste e abatido.
  - Mãe, o mano vai voltar? – perguntou.
  - Esperemos que sim, querida. Come a sopa. – respondeu Miriam sem olhar para a filha.
  - E este ano há presentes, mãe?
  - Come a sopa, Esmeralda. – pediu o irmão.
Santiago vagueava agora pelas ruas de Portimão, cheio de frio, embora não o demonstrasse. As ruas estavam desertas, sem vivalma. O seu único companheiro naquela noite seria o vento que uivava cada vez mais alto. As árvores estavam nuas, já que as folhas jaziam no chão e cobriam o tecto dos carros.
Mais à frente, Santiago viu um homem, deitado no chão, cobrindo-se apenas com um bocado de cartão. Aquela era uma zona muito perigosa para se estar sozinho, ainda por cima nas condições que apresentava. Aproximou-se do senhor e reparou que ele dormia; quando se baixou para o acordar, o homem levantou-se, assustando o jovem.
  - Desculpe, não queria incomodá-lo, mas está uma noite fria. Por favor – despiu o casaco e entregou-lho – queira aceitar o meu casaco para se proteger da noite.
O homem olhou-o.
  - Não creio que me devas pedir desculpas a mim, quando foi a tua família quem magoaste, Santiago. – respondeu o homem levantando-se.
Apesar de parecer muito degradado fisicamente, não parecia estar minimamente afectado quer pelo frio, quer pela idade que aparentava. No entanto, essa era uma questão que não despertava grande interesse a Santiago. Como sabia aquele sujeito, desconhecido para ele, o seu nome e, mais ainda, que tinha magoado a família?
  - Como sabe quem sou?
  - Meu filho, como eu sei quem tu és, é uma questão irrelevante.
  - Como sabe o que fiz?
  - Irrelevante.
  - O que quer de mim?
  - Perceber porque fizeste o que fizeste com a tua família. Achas que não têm dado tudo por tudo para que sejas feliz?
 - Não questiono essa parte. O que me revolta é saber que nós passamos por estas dificuldades e ninguém nos ajuda. Todos os meus colegas da escola estão melhores que nós. Conseguem arranjar dinheiro e superar todos os obstáculos e, ainda por cima, apesar da crise, conseguem ter presentes.
  - Mas há uma coisa que eles não têm, que tu tens.
  - Diria antes, eles têm algo que eu não tenho: um pai.
  - Pensas que por eles terem um pai que são mais felizes que tu? Falta-lhes amor, felicidade, carinho. Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades. Apesar dos pais dos teus colegas terem dinheiro e lhes proporcionarem um Natal estável, falta-lhes tempo para o passarem com eles.
  - Independentemente disso, conseguem o que querem. Não são eles que precisam de um milagre. Sou eu, a minha família.
  - Milagre? – riu-se. – Achas que precisas de um milagre? Sabes o que é um milagres? Eu explico-te! Milagre é a tua mãe ter dois empregos, por muito miseráveis que sejam, e arranjar tempo para levar a tua irmã ao ballet, milagre é o teu irmão fazer o papel do teu pai e não se ir abaixo, milagre são os teus irmãos e tu, inclusive, fazerem com que a tua mãe se aguente ao vosso lado. Não és tu que precisas de um milagre, porque tu és o milagre deste Natal!
Santiago interiorizou todas aquelas palavras e compreendeu que, apesar de ser pobre e ter uma vida que não era das melhores, tinha o amor de toda a família. O amor que a muitos pais e filhos ricos poderia invejar. Lembrou-se da última coisa que o pai disse antes de morrer «Podemos não ser a melhor família do mundo, mas o amor que nutrimos uns pelos outros, supera a maior das dificuldades». Apesar de ter morrido, o pai amava-o muito e continuava a amá-lo e o amor, era a única coisa que os ligava. Tinha de regressar a casa, tinha de fortalecer o amor que unia aquela família, tinha de proporcionar o melhor Natal que aquela família alguma vez tivera.
  - Desculpe, senhor. Tenho de regressar a casa. Fique com o casaco. E obrigado. Feliz Natal. – assim partia Santiago para regressar a casa e fazer as pazes com a sua família. 
 O homem viu o jovem a cruzar a esquina e a desaparecer. Quando se sentiu seguro, retirou as enormes barbas, deixou cair o casaco que envergava e retirou o gorro, revelando-se o que era realmente. Nesse momento, surgiu outro homem ao seu lado.
  - Fizeste um excelente trabalho, Sertório. – proferiu o homem.
  - Não quero que ele caía nos meus erros. Eu vi no que ele se iria transformar se continuasse assim. Não quero esse futuro para os meus filhos.        
 - Estás sempre presente. Eles sabem-no. Mais tarde ou mais cedo saberão que não foi suicídio a causa da tua morte. 
 - Isso é irrelevante, Gabriel. Eu descobri a solução para a crise e fui morto por isso. O meu único objectivo é assegurar a felicidade da minha mulher e dos meus filhos.
  - Amar-te-ão por isso. Vem, está na hora.
Sertório olhou para o casaco do seu filho, repousado na sua mão.
  - Achas que posso levar uma pequena recordação?
Gabriel olhou para o casaco e sorriu.
  - De certeza que Ele não se importará. Dá-me a mão.
Assim que Sertório colocou a mão no braço de Gabriel, umas asas brancas, mais brancas que a neve saíram do corpo do anjo e voaram em direcção ao Paraíso.
A porta de casa abriu-se e Santiago entrou. Todos dormiam. Tinha estado fora de casa cerca de duas horas, porém, não parecia nada. Sentou-se à mesa e chamou por toda a família que, daí a instantes, se encontrava com ele.
  - Voltaste mais rápido do que pensava. – disse Octávio.
  - Fui estúpido da forma como agi. Queria vos pedir desculpa.
O silêncio reinou, por instantes. Ninguém se atreveu a falar, ou a mexer-se. Poderia Santiago estar mesmo “curado”? Só havia uma maneira de saber e Esmeralda ia tirar essa questão a limpo. Correu de braços abertos para o irmão que a recebeu da mesma maneira. Nunca na vida, Octávio e Miriam tinham visto um abraço de ambos. Sim, Santiago estava “curado”.
O jovem tirou uma flor de trás das costas e entregou-a à irmã.
 - Preferia entregar-te uma esmeralda, mas ofereço-te uma rosa, Esmeralda Rosa. – disse Santiago sorrindo.
Esmeralda pegou na flor e retirou-se para o pé do irmão.
Miriam aproximou-se do filho.
 - Desculpa por tudo mãe. – disse levantando-se.
A mãe abraçou-o e beijou-o. 
  - O que mais me conforta é saber que estás bem, meu amor.
Santiago conseguia sentir o amor trazido pela mãe naquele abraço. Estava a ter sucesso naquela missão. Estava a conseguir trazer mais amor e conforto à sua família.
Octávio aproximou-se, quando Miriam se afastou. Os irmãos ficaram parados a olhar um para o outro, até que o mais velho lhe estendeu a mão.
 - Que foi? Irmãos não dão abraços? – perguntou Santiago, puxando o irmão para o abraçar. – Desculpa, Octávio, por tudo. Quero que saibas que és o meu orgulho, és como um pai para mim. Aliás – afastou um pouco o irmão para puxar Miriam e Esmeralda, a fim de os abraçar em conjunto. – vocês são o meu orgulho.
 - O pai teria orgulho em ver-nos unidos. – disse Esmeralda.
 - Ele tem, amor. Algures onde ele esteja, ele tem. E ama-nos muito. – concluiu Santiago. – Tal como nós o amamos a ele. – sorriu ao lembrar-se das palavras do pai. - Podemos não ser a melhor família do mundo, mas o amor que nutrimos uns pelos outros, supera a maior das dificuldades. Amo-vos a todos. Feliz Natal.

 - A sempre tua, Esme!

1 comentário:

"Desaprender para aprender. Deletar para escrever em cima.
Houve um tempo em que eu pensava que, para isso, seria preciso nascer de novo, mas hoje sei que dá pra renascer várias vezes nesta mesma vida. Basta desaprender o receio de mudar"